(O zumbido de uma
mosca)
(Silêncio
sepulcral)
(Mosca zumbindo,
insistente)
(Murro em madeira)
(Respiração
pesada, irada)
(Silêncio)
…
(Mosca, outra vez)
(Uma voz que
ninguém escuta; a voz de um pensamento): “Por acaso sou uma
laranja podre num cesto de maçãs boas?”
(Música começa)
(Moscas dançam
sobre a pele descoberta)
Moscas percorrem
minha carne,
cobrem minha
face... De quê?
(De morte!)
Hoje não é um
bom dia pra viver...
Mas vou
vivendo... Mesmo assim.
Teimoso,
feito uma mosca
sem norte,
levo um murro no
rosto,
outro na boca do
estômago...
Mas logo volto
correndo.
Sou assim.
(Coro levemente
discordante de moscas se une ao instrumental imaginário)
Estou na cama
deitado,
a mim mesmo
abraçado.
Não consigo me
mover...
E se quer mesmo
saber...
Há muito tempo
eu tento.
Veja só como voa
o tempo.
Como morrem meus
sussurros ao vento.
Estou esperando o
fim.
O fim que nunca
vem...
Eu acordo de
novo,
com moscas no
rosto.
Um colchão sem
lençóis,
mofo na alma e no
corpo...
Ninguém consegue
ver?
Eles não veem?
Será
Que
Eles
Não
Me veem?
(O instrumental
imaginário cessa bruscamente)
(A voz de
pensamento, de novo. Resignada): “Ninguém nunca me vê.”
(Silêncio breve)
(Enxame de moscas;
cacofonia total)
(Voz de pensamento;
murmúrio ainda audível sob os zumbidos): “Ninguém nunca nos
ouve. Por acaso sou um fruto podre?”
(Voz e enxame de
moscas se tornam uma única voz, um sussurro chiado que ninguém
ouve, acompanhada de batidinhas leves nos pratos; inicia-se um
monólogo): “Dizem que em boca fechada não entra mosca, mas
quero abrir a minha, por mais inconveniente que isso seja. Não, não,
não. Você está enganado. Eu nunca atentei contra a minha carne,
nem cortei minha pele. Não preciso. Não quero. Em minha inércia,
as moscas nem esperaram eu apodrecer. Simplesmente vieram. Sentiram o
meu cheiro de morto vivo. Dançam sobre mim. Eu não sei como viver,
eu não sei como morrer. Mas vou vivendo... Sou assim.”
(Gradualmente, voz se estabiliza; alguns zumbidos isolados podem ser ouvidos ao
fundo): “Querido diário, quando vão olhar para mim? Quando
é que eles vão me ver? Ou me ouvir? As varejeiras
são as únicas que me olham. Parecem famintas. Eu amo
a vida, mas ela nunca pareceu amar a mim. Eu sorrio para a vida, mas
sinto-me ridículo por sorrir. Sofri uma metamorfose. Não sei mais
quem eu fui. Não sei mais quem eu sou. Algo que não é mais deste
mundo. O que me diz?”
(Silêncio)
(O zumbido de uma
mosca)
(Murro na madeira)
(Silêncio)
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