terça-feira, 18 de abril de 2017

40. Moscas


(O zumbido de uma mosca)
(Silêncio sepulcral)
(Mosca zumbindo, insistente)
(Murro em madeira)
(Respiração pesada, irada)
(Silêncio)
(Mosca, outra vez)

(Uma voz que ninguém escuta; a voz de um pensamento): “Por acaso sou uma laranja podre num cesto de maçãs boas?”

(Música começa)
(Moscas dançam sobre a pele descoberta)

Moscas percorrem minha carne,
cobrem minha face... De quê?
(De morte!)
Hoje não é um bom dia pra viver...
Mas vou vivendo... Mesmo assim.

Teimoso,
feito uma mosca sem norte,
levo um murro no rosto,
outro na boca do estômago...
Mas logo volto correndo.
Sou assim.

(Coro levemente discordante de moscas se une ao instrumental imaginário)

Estou na cama deitado,
a mim mesmo abraçado.
Não consigo me mover...
E se quer mesmo saber...

Há muito tempo eu tento.
Veja só como voa o tempo.
Como morrem meus sussurros ao vento.
Estou esperando o fim.
O fim que nunca vem...

Eu acordo de novo,
com moscas no rosto.
Um colchão sem lençóis,
mofo na alma e no corpo...
Ninguém consegue ver?
Eles não veem?

Será
Que
Eles
Não
Me veem?

(O instrumental imaginário cessa bruscamente)

(A voz de pensamento, de novo. Resignada): “Ninguém nunca me vê.”

(Silêncio breve)
(Enxame de moscas; cacofonia total)

(Voz de pensamento; murmúrio ainda audível sob os zumbidos): “Ninguém nunca nos ouve. Por acaso sou um fruto podre?”

(Voz e enxame de moscas se tornam uma única voz, um sussurro chiado que ninguém ouve, acompanhada de batidinhas leves nos pratos; inicia-se um monólogo): “Dizem que em boca fechada não entra mosca, mas quero abrir a minha, por mais inconveniente que isso seja. Não, não, não. Você está enganado. Eu nunca atentei contra a minha carne, nem cortei minha pele. Não preciso. Não quero. Em minha inércia, as moscas nem esperaram eu apodrecer. Simplesmente vieram. Sentiram o meu cheiro de morto vivo. Dançam sobre mim. Eu não sei como viver, eu não sei como morrer. Mas vou vivendo... Sou assim.”

(Gradualmente, voz se estabiliza; alguns zumbidos isolados podem ser ouvidos ao fundo): “Querido diário, quando vão olhar para mim? Quando é que eles vão me ver? Ou me ouvir? As varejeiras são as únicas que me olham. Parecem famintas. Eu amo a vida, mas ela nunca pareceu amar a mim. Eu sorrio para a vida, mas sinto-me ridículo por sorrir. Sofri uma metamorfose. Não sei mais quem eu fui. Não sei mais quem eu sou. Algo que não é mais deste mundo. O que me diz?”

(Silêncio)
(O zumbido de uma mosca)
(Murro na madeira)

(Silêncio)



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