Que a verdade seja logo dita: é tudo tão solitário
aqui em cima!
Do alto da Montanha da Solidão, vejo rostos angustiados
voltados para o céu, além de incontáveis pares de olhos que tentam
enxergar o pico coberto pelas nuvens, um gesto fútil que vem sendo
praticado e difundido desde os tempos mais remotos.
Roupas e comportamentos foram substituídos ao longo da
História; muitos costumes se perderam, civilizações desapareceram
e culturas morreram nos últimos milênios; gigantes legítimos foram
extintos, mas a prepotência dos homens nunca foi abandonada, apesar
de estarem revestidos de mortalidade e da diminuição relevante de
suas estaturas.
E mesmo assim, a tradição de incessantemente olharem
em minha direção permaneceu imutável, um patrimônio intacto da
humanidade.
Tenho um repertório muito vasto de histórias
fascinantes para contar. Entre as aventuras de camponeses pacatos e
os dramas intimistas de doutores e homens da lei, os próprios
personagens contam essas histórias ao vivenciá-las, sem haver a
necessidade de um narrador onisciente, de uma voz sem rosto que
traduza em palavras as desventuras e os sentimentos experimentados
por eles.
Ora, sou tão somente o fio condutor de tais histórias.
Ninguém em sã consciência sonharia em receber o beijo
frio de minha opositora. Ninguém em perfeito estado de espírito
correria para os braços abertos da Morte. Nenhum ser
consideravelmente deslumbrado quer vê-la depois de ter vivido e
suado em profusão na tentativa de erguer um castelo de cartas
majestoso.
Por outro lado, os mortais olham para o alto e esperam
encontrar o meu olhar de volta.
Muito antes da criação de fórmulas milagrosas
modernas, os alquimistas da Antiguidade já devotavam parte de suas
vidas na busca pelo elixir que permitiria o prolongamento de suas
experiências carnais.
Verdade seja dita: ninguém emocionalmente saudável
quer morrer tão cedo!
Se hoje temos os programas intensivos de exercícios
físicos e a implementação de hábitos saudáveis, tornando
possível ao ser humano não acidentado morrer com um aspecto muito
mais agradável, antigamente o homem mortal procurava por fontes
mágicas de águas rejuvenescedoras.
Tudo para que a linha da Vida não mais se apagasse,
para que as previsões ou interpretações de ciganos e demais
adivinhadores se provassem falsas, meros atrativos para os
supersticiosos desesperados.
Procuravam na magia um meio de combaterem uma suposta
superstição.
Ninguém quer morrer tão cedo, mas morrem antes de se
cumprirem as promessas acumuladas de todos os anos. E alguns até
morrem muito antes de surgirem as primeiras rugas de preocupação.
E o meu rosto nunca foi visto.
Ou talvez não tenha sido bem assim.
Quero dizer, poucos foram aqueles que não apenas
conseguiram enxergar o topo da Montanha da Solidão como também
conquistaram um lugar ao meu lado à mesa nos banquetes eternos
promovidos pelas entidades maiores; pelo menos é o que as pessoas lá
embaixo contam umas às outras.
De tempos em tempos, a humanidade tem tentado mapear o
caminho até mim. Filósofos, religiosos e artistas sempre ansiaram
romper com as barreiras de suas respectivas mortalidades por meio de
suas limitadas capacidades, e por meio de suas respectivas visões
acerca da Vida e da Morte. E olham para o topo da montanha carregando
o mesmo brilho presente nos olhos daqueles que sonhavam com a Terra
Prometida.
O artista almeja viver para sempre, mesmo que por meio
de suas obras. Verdade seja dita: ninguém quer ser esquecido! A alma
de um artista grita por reconhecer a própria finitude, e o artista
tenta fazer o grito reverberar através dos séculos, eternizando sua
alma ao aprisioná-la nas próprias obras.
O filósofo, assim como o religioso, pergunta a si mesmo
se é possível viver para sempre.
Olham para cima e esperam uma resposta.
Contemplam um mistério.
Recebem o meu silêncio.
Às vezes também me pergunto se existirei para sempre,
apesar do meu nome e de minha natureza infinita. É tudo tão
solitário aqui em cima. E ter de esperar toda a eternidade até que
as pessoas lá embaixo venham até mim faz eu querer ser igual. Igualmente mortal.
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