Shhh...
Não tenha medo.
Prazer em conhecê-lo.
Não quero que pense em mim como uma inimiga, mas como
uma velha amiga que o esperava com lágrimas nos olhos (se eu
soubesse como é chorar) e que o amava desde muito antes de seu
nascimento. Confie em mim e segure a minha mão quando eu vier. Não
tenha medo; nosso encontro será inevitável. Não é necessário me
procurar na tentativa de chegar adiantado, pois eu ainda virei
buscá-lo. O que fizer por sua conta antes disso não será mais de
minha responsabilidade.
É verdade, ainda não fomos formalmente apresentados,
mas eu não sou exatamente uma completa estranha de quem possa fugir
e se esconder para sempre. Meu rosto pode ainda não ter sido
revelado aos seus olhos, mantendo-se, até então, invisível sob um
capuz intimidador, mas certamente conheceu quem tenha me visto e
depois sentido o toque gentil de meus lábios na pele.
Sou amiga de todos os seres viventes: dos grandes e
também dos pequenos, dos bípedes intelectualizados e dos seres
rastejantes. Sou amiga de todos e os amo de uma maneira especial. Eu
cuido de todos eles com um carinho muitas vezes ausente entre seus
iguais.
É verdade, nem sempre as circunstâncias que antecedem
a um encontro são as mais lisonjeiras ou favoráveis à minha fama,
e isso apenas confirma a injustiça muitas vezes presente nas ações
da Vida. Eu apenas espero pelo momento certo de aparecer e revelar
meu rosto, geralmente alguns momentos de agonia antes de se fecharem
os olhos de quem você ama ou amou ou de quem odeia ou odiou. Ou de
quem havia nutrido o mais absoluto desprezo.
Eu os seguro pela mão, e, com um toque gentil de meus
lábios na testa, caem em um sono profundo. Em seus sonhos, há quem
diga, eles voam comigo acima das montanhas e em direção às nuvens
e além, ainda segurando minha mão e ouvindo o bater de minhas asas.
Há quem diga que os sonhos de alguns logo se transformam em
pesadelos, quando insidiosamente os levo acima da montanha mais alta
e depois os solto sem aviso, e silenciosamente observo sua longa
queda até serem engolidos pelo abismo. Muitos seres humanos
acreditam que seja assim.
Ninguém sabe muito bem o que acontece depois.
Os remanescentes apenas tentam imaginar como essa
história poderia continuar após esse ponto, fazendo de mim um
mistério ou uma lenda, pois sabem muito bem que de algum modo estou
envolvida nisso tudo, no sono profundo e na nova realidade em que
seus entes queridos ou inimigos não mais acordam; existe a negação
inicial, depois o choro de tristeza ou de alegria, além da
histeria, mas os belos adormecidos não mais abrirão os olhos. Eles
não sabem que algum dia estiveram acordados. Nada mais sabem.
Os belos e os feios, os ricos e os pobres, os sábios e
os tolos, os que curam e os que fazem outros dormirem: todos eles
dormirão profundamente. Todos, sem exceção.
Os remanescentes não conseguem ver meu rosto, nem ouvem
qualquer palavra dita ou qualquer diálogo travado entre mim e
aqueles que ainda resistem a serem libertados de sua dor com um
beijo, enquanto tento convencê-los de que o meu feitiço é muito
mais gentil e suave que aquele lançado pela Vida: o de sentirem, na
pele e na alma, tudo o que é possível sentir; mesmo aqueles que
eventualmente flertam comigo resistem ao meu charme e se contorcem
quando me veem, negando para si uma entrega completa ao meu beijo e
aos meus carinhos de amiga. Para os remanescentes que os amaram
restam somente as lembranças e as lágrimas e a maldição de
ficarem acordados e sentindo as dores da continuidade. Para eles, eu
sou um tabu.
Perdoe-me, mas existo. De qualquer modo, eu seguro a mão
de quem fala de mim e também de quem não fala; não faz diferença.
Sou um tabu que eles (e você) quebram lentamente, mas
muito lentamente. Conforme avançam em idade e experiência, as
pessoas se acostumam com a ideia de dormirem por muito, mas muito
tempo. Tornam-se serenos com a ideia de não terem mais a necessidade
de dormir e acordar para um novo dia de dores e experiências
tediosas ou emoções negativas afligidas por quem se encontra acima
deles em alguma hierarquia; e mesmo esses homens no topo estão
abaixo de mim. No Grande Esquema das Coisas, mesmo eles são
relegados à posição vulgar de comentaristas de meus feitos,
debatem a respeito de como eu seria e de como o mundo seria depois de
terem ido dormir, deixando tudo para trás.
São inúmeros os rumores a meu respeito.
Dizem que sou uma entidade tangível, personificada e
com personalidade própria, inteligente, e não somente um mero
conceito abstrato ou uma simples força invisível. Há quem possa
sugerir que eu poderia ser mais uma entidade tipicamente lovecraftiana*:
superior aos homens e ao seu intelecto, um horror cósmico com o
poder de conduzi-los à loucura, e que por isso mesmo me faço
invisível ou intangível, tornando o homem resignado ao seu estado
frágil de ser inferior, tornando-o incapaz de olhar-me nos olhos sem
gritar histericamente. Os rumores também dizem que sou uma ave de
rapina de olhos negros que se transforma numa velha ou em uma caveira
com olhos vermelhos afundados nas órbitas e um sorriso perverso em
sua face descarnada, ou que sou apenas uma meretriz de capa e capuz a
seduzir os desesperados, com a diferença de que são beijados com
amor e não golpeados com uma foice.
Aos recatados e aos pervertidos, um aviso: eu os terei
sob o meu domínio.
Fica a seu critério acreditar ou não em mim ou em
minhas palavras, mas isso não muda o fato de que eu também derrubo
gigantes e guardo os seres microscópicos em meu bolso.
Mesmo você deve ter me visto parcialmente em diversas
ocasiões: vivo com meu rosto escondido nas sombras, exceto nas
noites de perigo e de tempestade, quando tenho o meu rosto
temporariamente revelado pelo clarão de muitos relâmpagos que
prenunciam os acessos de fúria da reverberante Voz do Trovão.
Quando pensa estar em perigo, por um breve momento você tem a
impressão de me ver. Mas ainda não é chegada a hora de me revelar.
Há também quem me procure de tempos em tempos,
cortejando-me, vendo em mim uma grande promessa. Ou uma musa a quem
atribuem uma fonte inesgotável de inspiração: e muitas vezes eu me
vi na companhia de palavras no papel, ou entre rabiscos e paisagens
de tinta, ou flutuando entre as ondas sonoras, o que faz de mim uma
tendência. Para começar, eu sou o principal motivo pelo qual as
pessoas vivem sempre tão ansiosas. Elas querem fazer de tudo um
pouco antes de me verem.
Tenho observado a longevidade de uma tradição milenar
que diz que você tem de correr para “ser alguém na vida”, seja
lá o que isso signifique, e, para isso, deve competir e fazer tudo o
que for possível para ser um dos escolhidos. E bem sabemos do que as
pessoas são capazes.
No vale em que caminha a humanidade, o joio e o trigo
murcharão e ficarão secos com a passagem de minha sombra. Seguem em
linha reta, esses homens e mulheres, e veem o meu rastro nas duas
direções, sabendo que, em breve, eu os encontrarei. Cedo ou tarde,
eu os terei em meus braços, pouco importando o que tenham feito
antes de mim.
Os bons e os maus, os justos e os injustos, os
opressores e os oprimidos: todos se apagarão como velas
deixadas ao vento. Pois levo a todos, sem preconceito ou julgamentos.
É verdade, você ouviu a meu respeito desde o início
ou desde o momento em que tomou consciência de que quase tudo é
efêmero, e de minha existência não aplaudida e de meus mistérios,
mas simplesmente me nega ou finge que não existo, como se isso fosse
facilitar as coisas.
Lembre-se de que somos amigos, você e eu.
Pareço impiedosa aos seus olhos, mas sou aquela que faz
sua vida ter sentido. Ouso dizer que você quer viver justamente por
minha causa, sabendo que, algum dia, não mais terá as regalias de
antes quando finalmente estiver ao meu lado. Mas veja pelo lado bom:
não mais terá refeições indigestas ao lado de sabotadores,
bajuladores e hipócritas, nem mais terá de ouvir os eternos
questionamentos a respeito de tantas expectativas não cumpridas.
Sendo eu mais nova que a Existência de Tudo, ainda sou
uma anciã no Grande Esquema das Coisas, enquanto todos vocês são
pequenos grãos de areia acumulados e perdidos no meio do tempo.
Estou velha demais para ter de ouvir suas sagradas reclamações a
meu respeito, quando tenho uma função muito específica a cumprir:
equilibrar o caos no universo. Quero que saiba disso: minha missão é
muito nobre, verdadeiramente nobre, por mais que eu não salve vidas.
Para começar, eu sou a única garantia verdadeira de
algum pagamento para suas ações, mesmo que não tenha feito algo de
muito relevante ou de muito hediondo em vida. Pois antes mesmo de ter
nascido, você já havia herdado de seus pais sua condição de
criatura efêmera; aliás, todos foram prometidos para mim sem
existir a necessidade de um contrato assinado entre as partes
envolvidas. Tenho viajado através das eras para poder encontrá-lo
na hora previamente marcada, mas não divulgada. Não cabe a você
saber ou querer decidir o momento, por maior e mais forte que seja a
sua obsessão em querer estar no controle de tudo.
Eu mesma sou a obsessão de muitos e o maior medo de todos; mesmo quem me procura tenta sempre resistir ao meu toque frio,
porém gentil, naqueles breves momentos que antecedem seu mergulho na
escuridão mais profunda.
Permita-me, então, cumprir com a minha missão e
equilibrar o universo, mantendo a ordem no Grande Esquema. Viva para
aprender o que realmente importa.
Sou diferente de vocês, e nada mais tenho a aprender.
Eu sei muito bem de onde vim, quem sou e para onde vou. Mas tenho
comigo vários conselhos e ensinamentos para compartilhar com todos
os seres humanos até a consumação dos séculos. Contudo, não nos
resta muito mais tempo.
Posso ser uma abominação aos olhos alheios, que me
veem como um atentado contra a natureza; mas saiba que outras vidas
são admitidas neste mundo por causa de minha nobre intromissão na
vida daqueles que anteriormente ocuparam a Terra com seus corpos e
com suas respectivas experiências. Caso ainda não tenha percebido,
sou uma agente de renovação do ciclo da Vida. Permito que todos
tenham o seu devido espaço no mundo no pouco tempo que possuem em
mãos, que tentem fazer o melhor antes de o tempo acabar, e que
cumpram suas respectivas missões antes de serem substituídos. Uma
vida pela outra, e o mundo continua girando.
E os rumores ainda dizem que sua vida toda passa diante
de seus olhos quando você se encontra mais perto do fim, tal como um
filme muito longo que relembra momentos bons e ruins, alegrias e
tristezas, conquistas, perdas e abandonos. Ninguém conheceu
pessoalmente quem tenha voltado para contar história, mas as pessoas
dizem muitas coisas a meu respeito; tentam compreender algo que vai
muito além da compreensão de seus espíritos limitados, e levam uma
vida inteira para isso.
Se me permite um último conselho, nunca diga “nunca
me abandone.” Nunca acredite piamente em promessas sinceras de
outros meros mortais, seus semelhantes. No fim, todos serão
abandonados. Todos irão e ficarão sozinhos. Quem amou ou foi
amado... no fim será abandonado por quem menos esperava. E mais:
pedir um último beijo não diminui a dor de caminhos separados. Pois
o último beijo sempre me pertence.
Espero que adivinhe o meu nome.
*Das obras de H. P. Lovecraft (1890 – 1937), escritor estadunidense.
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