quarta-feira, 24 de setembro de 2014

19. Presença (II)

(Continuação de Presença)


Não, eu não sumi de vez.
Eis-me aqui.
De novo.
Não pense você que eu finalmente me esqueci de teu rosto. É praticamente impossível, mesmo se eu quisesse e muito tentasse. O teu rosto, a tua lembrança, insistentes como são, eles não me permitem o dom do esquecimento permanente.
O primeiro passo para a nossa liberdade deveria ter sido a completa ausência de luto. E uma vez que o luto invadiu meus pensamentos, ele tem me atormentado em meus sonhos de olhos abertos.
Tenho me afogado no sal das lágrimas e da saliva e na amargura de meu sangue quente. Mas somente às vezes, devo dizer. Isso é quando me sinto mais solitário, sem encontrar o conforto de tuas palavras sussurradas ao ouvido, de tua voz mansa e suave, de teus abraços e calorosos beijos.
Fortes são os meus sentimentos.
Muito mais eu senti depois de tomar conhecimento de tua partida prematura.
E mais amolecido tornou-se o meu coração aparentemente blindado.
Tragédia das tragédias! Hoje eu sou aquele que derrama lágrimas ao ouvir e testemunhar histórias com finais felizes ou quando escuta canções românticas e tristes no rádio.
O que fez comigo, anjo de vidro?
Depois de vê-lo quebrar uma de tuas asas para que o teu desejo o conduzisse para o lado humano que sempre existiu em você, eu vi crescer e aumentar uma das pequenas rachaduras de tua fragilidade, e aos poucos vi o meu anjo se despedaçar por inteiro. Nada pude fazer.
Nem a mim você quis escutar.
Sua escolha fez: da minha mão você se soltou.
E isso fez de mim um homem igualmente frágil.
Tudo bem, grande tolice foi eu ter pensado que poderia simplesmente seguir em frente sem ter reconsiderado tudo o que foi deixado para trás: as coisas que senti e aprendi quando a tua presença era muito mais real, e não a de um mero fantasma sussurrante, incapaz de sair desta prisão de lembranças na qual o trancafiei.
Prometi o silêncio, mas tenho feito de você um assunto a ser lembrado e relembrado entre todos os que vieram depois, um fato que às vezes me faz pensar se eu não estaria sendo injusto ao trazer a tua memória à tona e não permitir que descanse em paz.
Mas, sinto muito, simplesmente não consigo evitar.
Todos os que ficam sentem as consequências do vazio que cresce no interior de um peito golpeado pela ausência e pela solidão. E este vazio eu só consigo preencher razoavelmente bem ao verbalizar muitas daquelas lembranças que costumavam ficar trancadas a sete chaves.
Para elas não morrerem com você.
Mais e mais pessoas conheceram e conhecem a nossa história, que, apesar de não ter nem chegado perto de durar aquela eternidade prometida, foi suficientemente longa para ter um impacto maior ou semelhante ao de tantas outras histórias muito mais duradouras.
Repleta de altos e baixos, de alegrias e tristezas, a nossa história foi contada e recontada diversas vezes. E em muitos sentidos, essa é uma história que se repete, mudando-se apenas os personagens.
Foi tudo muito puro em suas intenções.
O amor pelo amor.
Mas também foi desafiador em todos os sentidos.
Muitas vezes sou surpreendido por perguntas difíceis ou sem respostas.
De tudo o que pude ou quis contar, falei sobre os encantos e desencantos, sobre como desafiamos a este mundo sem cores, sobre as diferenças que nos completavam, sobre os nossos sonhos, nossos medos e delírios, sobre os erros e acertos de ambas as partes. Sobre os teus conflitos internos, e a luta contra a solidão e contra o demônio na garrafa...
Sabe, ter partido não faz de você um exemplo de perfeição desencarnada, tornando-se automaticamente intocável. No entanto, eu também sei que não pode mais se defender.
Mas tenho pensado melhor, e hoje reconheço que também não posso mais unir os fragmentos deixados pelo anjo de vidro. Simplesmente não há mais conserto.
“O que está feito, feito está.”
E também sei que você não vai mais voltar.
Depois de algum tempo, e depois de ter colocado tudo em perspectiva, algumas coisas mudaram desde então.
Nunca tive um súbito despertar que me arrebatasse dos sonhos de olhos abertos, mas o tempo foi o grande encarregado de cuidar da transição do nosso fim para o meu recomeço. Muitos silêncios reflexivos foram necessários para que aquele garoto assustado se transformasse aos poucos neste homem mais seguro de seus sentimentos e muito mais ciente de seu lugar no mundo, ainda que um tanto marcado pela fragilidade herdada pela tua desistência.
Mas agora penso ter finalmente encontrado o caminho para uma segunda chance.
É o começo de uma nova vida, com novos amores possíveis.
Quero pensar nisso como o começo de um novo ciclo.
Ou a continuidade de uma nova percepção.
Sabe, tenho aprendido muito com esse buraco que você um dia cavou em meu peito, o lugar em que veio habitar quando tornou-se uma lembrança que nunca dorme. E entre as lições aprendidas, talvez a mais importante tenha sido a descoberta de que o amor também é sobre ter a humildade de saber deixar o outro partir.
Eu amo você. Sempre amarei.
Por favor, descanse em paz.
Jamais poderei esquecer que um dia você significou tudo para mim, mas suplico que solte a minha mente e a liberte dos pensamentos obsessivos que levam o teu nome, assim como um dia deu-me uma suposta liberdade quando soltou a minha mão.
Então, por favor, liberte-me de uma vez de tua presença ausente.
E mesmo que não possa mais me ouvir, isso eu ainda quero te dizer: nunca se esqueça de que sempre amarei você.
Fim.
...
E então…
E então…
...
E então, pode dormir agora?

-------------------------------------------------


Para mais informações e novidades:

Sigam-me em meu perfil no Google Plus

Sigam-me também no Twitter

Curtam e sigam minha Página do Facebook